sexta-feira, 21 de outubro de 2016

O Encantador de Gente

Gonçalo competa hoje dois aninhos. E quem não o conhece não sabe o que é ser invadido por um comboio eletrificado de carinho, por uma flecha que se finca no peito, enche-o de ternura e nunca mais sai de lá. Gonçalo é um misto de doçura e traquinagem, arrumadinhas de tal forma que nos é impossível definir. Ele é pura energia e sorrisos. Tudo o que existe à sua volta é um mundo novo a ser descoberto, tocado, desmontado, jogado.
A vida, na sua concepção, é colorida, tem ruídos que precisam ser despertados, tem texturas que têm que ser experimentadas. E assim os talheres viram batutas e os pratos tambores. O copo d'água precisa ser derramado para experimentarmos o molhado. O brinquedo, o telefone, e tudo o que é possível desmontar precisa ser desconstruído para ser descoberto. E os sonhos que, para a maioria ficam apenas nas idéias, para ele devem ser vividos e cada dia é uma aventura nova.
É bem verdade que é um menino de poucas palavras. Mas palavras para que, quando há tanto o que se fazer, tanto a descobrir e tão pouco tempo? Nunca se sabe quando virá uma mágica chamada sono, que o faz fechar os olhinhos e daí... bem, daí só haverá mais aventuras quando a mágica acabar e os olhinhos se abrirem. Não é preciso muito falar quando se sabe usar esse carisma, esses olhares e esse sorrisinho com maestria ímpar! Feliz aniversário, meu netinho encantado!

Verónica Vidal

terça-feira, 21 de junho de 2016

Doces Brasileiras em Terras Lusas

Aproveitamos melhor a nossa infância na maturidade. Não tenho a menor dúvida disso. Hoje, aos 48 anos, aproveito a minha infância como não a fiz aos 8. Talvez porque não tivesse à época qualquer consciência da efemeridade das fases da vida, talvez porque estivesse concentrada em aproveitar o momento e fotografá-lo na memória porque secretamente sabia que dias viriam em que eu iria amar me lembrar desses instantes.

Minha tão esperada visita da tia Gisele se fez real. Finalmente! Depois de nove anos de exílio autoimpingido e após um planejamento frustrado, minha tia/madrinha veio passar uns dias comigo. poucos, mas bons. E junto veio minha tia menina Alice, mulher viajante, menina de estrelinhas. E com elas veio Sandra, prima misteriosa que deslindou o fio da meada entrelaçada da nossa família misturada e eu acabei por ser lembrada de que tinha uma tia que não era tia mas havia sido tia porque meu avô que não era avô virou avô. Logo, Sandra é minha prima. Simples assim e claro feito água como todas as coisas na minha família. Para coroar, trouxeram Rose, amiga da tia Gisele. Se bem conheço o histórico da família e o bom encaixe de Rose nessa tresloucada mistura, meus netos ainda a chamarão de tia e se um dia alguém disser que ela não é tia será complicado explicar sua origem.

Casa cheia, dividi com meu marido as nossas visitas: Eu ficaria encarregue das quatro brasileiras e ele dos quatro portugueses. Ah, sim, porque visitas cá em casa quando aparecem vêm em bando. E espaço arranja-se. E lá fomos as cinco mulheres de meia idade, ou quase isso, sapecando pela região centro de Portugal. Do passeio nos moliceiros de Aveiro, com a doce brisa a beijar o nosso rosto e o belo Pedro que nos abandonou chorosas, levamos no peito as saudades e no estômago o peixe grelhado e as tripas d'Aveiro. Milagrosamente eu consegui perder a Lagoa de Mira, mas em se tratando de uma pessoa como eu na condução, perder um acidente geológico como uma lagoa ou uma montanha, não é fato inédito. O jantar nos esperava. um bacalhau português, feito em Portugal por um autêntico português. Já não importava mais quantas vezes tínhamo-nos perdido ou se o cansaço nos dominava. Chegamos em casa. Bacalhau e vinho. E conversa fiada. Tudo isso ao mesmo tempo todo mundo junto e misturado.

E largamos nossos sorrisos pelas ruelas de Óbidos, perdemo-nos nas lojinhas e já ninguém se preocupava com o excesso de peso da mala. E depois das promessas não cumpridas de nada mais comprar, paramos em Nazaré, porque eu queria deslumbrá-las com a vista daquela praia espatacular, do casario branco e dos enormes penhascos enquanto Rose queria deslumbrar suas cachorrinhas com presentinhos portugueses - só mais estes!

Por cá torcemos para clubes diferentes, temos religiões diferentes ou nenhuma, temos nacionalidades distintas, discordamos de algumas coisas, concordamos com outras tantas. Falamos todos de uma só vez porque há muito o que dizer, muito o que ouvir e pouco tempo para tudo. Temos todos sede de amor, amor demais para dar e ele vai saindo por todos os cantos e jeitos, em forma de frases, de abraços e de comida, de passeios e de risos, de vinho, de orações, de presentes e de lágrimas. Quem por cá chega é família. 

E descobrimos que Coimbra tem muitos encantos e não só na hora da despedida. Vimos que a cidade é uma lição de sonho e nós fazemos a tradição. Nossa faculdade é o viver e o conviver, é o rir de um tudo e de um nada. Nosso livro é de ouro e a tinta da nossa caneta é indelével: Amor.

Verónica Vidal - é impossível resumir quatro dias em tão poucas linhas. Só me resta dizer uma coisa: Quem ficou com a foto do Pedro????

quinta-feira, 9 de junho de 2016

Tia Vivi - de vítima de assassinato à menina da bolinha de queijo

Ela foi a pessoa que mais sofreu nas minhas mãos. Foi torturada aos seis meses de idade quando eu, do alto dos meus quatro anos, a levei para o cimo de uma escada e a vi caindo de lá. Cresceu em tamanho mas nossas lutas continuaram sendo travadas no ringue de um imaginário infantil após as querelas sem fim, que surgiam do nada e por motivo torpe, mas era caso de vida ou morte para nós. Um pé na cama da outra, sentar ao lado da mãe quando seria o dia da outra num hipotético acordo previamente selado. Assim eram as brigas com a minha irmã mais nova. Três anos e oito meses a menos que eu, motivo suficiente para aborrecer-me a vida e as brincadeiras durante a infância.

Três anos e oito meses a mais do que ela e, como minha irmã mais velha tinha um horário na escola diferente do meu era também com ela que eu passava a maior parte do tempo livre em casa. Nossas históricas brincadeiras de Mulher Maravilha e nossos intermináveis banhos juntas, quando só saíamos após a mamãe gritar que a água do prédio não era só nossa, e corríamos nuas para o quarto, porque a toalha virava capa de super-herói, moem-me de saudades da minha irmã companheira de sempre.

Crescemos e viramos gente grande. Ela virou a tia Vivi. Para duas meninas do subúrbio que pouco saíam de casa, muito fizemos! Fomos as meninas das bolinhas de queijo! Têm noção do que é isso? Nossas histórias são só nossas e dariam um livro. Mas são só nossas. Foi a primeira das 3 irmãs a ter gatinhos. Sempre foi minha companheira de cinema. E teatro. E exposições. E com quem eu podia comentar um livro que li. É a única pessoa que eu conheço que quando fala eu penso: "Eu poderia ter dito isso." 

Hoje já não conseguimos fazer as mesmas coisas que dantes, porque vivemos muito longe. Falamo-nos sim, mas eu tenho um amor egoísta pela minha irmã mais nova. Daqueles amores de querer pegar a pessoa e conversar só com ela, passear só com ela, sufocá-la, feito vontade de agarrar bichinho fofinho? A este dei o nome de amor Felícia. E a culpa é do horário da escola. E dos três anos e oito meses. Ou talvez houvesse realmente alguma mágica na toalha que virava capa de super-herói.

Verónica Vidal
À minha amada irmã Viviane, que hoje completa 3 anos e oito meses menos do que eu, feliz aniversário para ti. Secretamente eu acabei por achar que mamãe e papai te fizeram para me dar uma irmãzinha de presente. Logo, és minha.

sábado, 16 de abril de 2016

Saudade é o vazio que o amor deixou sem nunca de lá ter saído


E perguntaram-me certa vez o que significa saudade. Palavra doce, que achou morada na língua portuguesa. E respondi do único jeito que sabia: Saudade, é o vazio que o amor deixou, sem nunca de lá ter saído. Saudade é o amor presente daquele que está ausente, daquele que deixou um espaço no coração e deixou este espaço justamente por nunca ter saído de lá.


Saudade é a fotografia dos melhores momentos com os nossos amados, que ficam na memória, escorregam para o coração e por lá vivem. Saudade apaga momentos ruins ou desvanece-os até que não mais sejam reconhecidos.

E assim como o amor, o espaço para a saudade é infinito: pai, mãe, irmãos, primos, amigos. Saudade da infância. Saudade de um cheiro. Saudade do cãozinho ou do gatinho que já se foi. Saudade de um amor que já não mais existe, de uma fé e de uma coragem que se foram perdendo pelos caminhos da vida. E assim às vezes, só às vezes, temos Saudades de nós mesmos.

A Saudade aperta o coração e faz transbordar pelos olhos, por excesso de amor na alma.

Saudade é o amor sempre presente, imortal. Só a sente quem ama e é verbo presente ainda que a pessoa esteja ausente. Saudade foi a palavra encontrada, na melhor língua do mundo, para Deus nos dizer que o amor vive para sempre.

Verónica Vidal

quinta-feira, 10 de março de 2016

Gisele, a força do amor

Eu sou filha do meio. Meio sem graça, no meio do caminho. Nem era a primeira a fazer as gracinhas nem a trocar os dentinhos nem era a mais novinha bebê a gatinhar pela casa. Para piorar um pouco mais, faço aniversário em outubro e no dia 30, ou seja: mais para o fim do ano, quando todos os temas de festas já haviam sido usados e um dia antes do fim do mês. Todo a gente dura. Lisa. Pelo menos toda a gente do meu mundo tão lotado de amor que pouco espaço sobrou para o dinheiro.

Foi quando Deus apiedou-se de mim. Estou quase certa de que foi mesmo assim. E Ele fez com que meus pais escolhecem para mim a melhor de todas as madrinhas. Mas é que não é só a melhor, como toda a gente diz que a sua é a melhor. É que a minha é mesmo a melhor das melhores, la crème de la crème. E eu fui então a primeira de seus inúmeros afilhados. Finalmente, era a primeira.

Cresci com a minha madrinha como modelo, queria ser como ela: alta, magra, loura, executiva, chique, linda, sorridente, forte e amorosa ao mesmo tempo. Bem, a questão da estatura, descobri que era mera perspectiva de uma criança de 1,30m. Lá de vez em quando fico loura, é bem verdade. Ser magra já desisti, uma vez que a minha pouca resistência aos chocolates nota-se perfeitamente nas minhas formas generosas. Mas ter uma personalidade forte e amorosa ao mesmo tempo é o que tento imitar desde sempre. Ela transborda emoção em lágrimas quentes e grossas, que lhe escorrem pela face e inundam suas palavras de amor. Como tudo aquilo que é lógico, seu nome foi gravado a sangue no Livro da Vida e ela espalha o seu dom de amor como quem derrama sementes de flores em solo úmido. E eu saí da minha terra, deixei o meu país, segura de que ele está bem guardado, porque sei que a minha madrinha hoje, há de beijar com orações o joelho ralado do meu Brasil e pedir a Deus que sare a nossa terra. Não há melhor band-aid do que este.

À minha tia Gisele, minha madrinha amada, irmã e amiga, presente precioso que Deus me deu.

Verónica Vidal

E disse o Senhor a Salomão: "E se o meu povo, que se chama pelo meu nome, se humilhar, e orar, e buscar a minha face e se converter dos seus maus caminhos, então eu ouvirei dos céus, e perdoarei os seus pecados, e sararei a sua terra."
2º livro de Crônicas 7:14

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Quando a infância emerge e vem cá acima respirar

 
Eliane, Marco, Bambam, o Castelo e Coimbra.
De vez em quando o mundo fica assim: Perfeito.



Eu devia ter uns oito anos quando minha mãe levou-nos a todas para uma visita à casa de uma amiga. Na minha época de menina, mãe quando saía de casa, levava os filhos junto. Não havia quem ficasse com eles, ia a trupe toda. As distâncias de então eram as mesmas de hoje, os recursos eram outros mas talvez os perigos fossem menos. A viagem de Bonsucesso até  Coelho da Rocha era longa, era preciso saber bem quais ônibus pegar. Mas isso era tarefa da mamãe, que dominava tudo e nunca nos preocupamos com essas coisas. Estávamos com a mamãe.

A casa da D. Walkiria tinha encantos que para uma menina de oito anos eram únicos: Os muitos colares de contas, as revistas de fotonovela da Maria, a laje e um lugar secreto, onde não se podia entrar. Nada mais era do que um altar com imagens de santos mas este era terminantemente proibido às minhas mãozinhas. Uma vez proibido pela mamãe, já não havia volta a dar. 

Mas é que lá havia uma santa princesa e um santo herói, que eu bem já havia espreitado. E lá um dia eu quis que eles se beijassem. Fui pega em flagrante delito, denunciada. Ganhei umas palmadas valentes que para mim valiam como espancamento em praça pública, mas fui salva pela D. Walkiria e ainda ganhei bolo naquela tarde. Sei que não chegaram a compreender que São Jorge apenas salvava a princesa N. Sra. da Conceição de um grave perigo que agora eu já não lembro qual era. 

E lá viviam os 3 filhos: O Zeca, adulto, que não nos ligava nenhuma, como convém a um homem feito, a Maria, moça morena e linda, que ria às gargalhadas e era dona das fotonovelas e o Marquinho, já um jovem moço, que parecia o Caetano Veloso e nos ajudava a subir na laje - o maior paraíso daquela casa.

E quis o destino, com a ajuda do Zuckerberg, que Marquinho e Maria me pescassem na rede. E foi então que tudo o que eu acabei de vos contar explodiu na minha lembrança como o doce recheio de um bombom. E quis também o destino que o tempo da Maria neste mundo se acabasse. E ela se foi assim, sem anúncio, como os bebês que nascem prematuros e assustam toda a gente. E o Marquinho , que cresceu e virou Marco António, fez-se doutor e importante, todo casado com a Eliane e pai de filhos e avô de netos, ameninou-se de novo diante do luto da Maria, que cumulava com outros lutos da vida.

Curiosamente vieram os dois à minha casa com a divina missão de curar o meu luto, de arrancar-me da casca. Eliane é o equilíbrio doce, é a serenidade, é o chá das cinco. Marco é a festa de sábado, é o meu pedaço criança, é caviar com champagne. Em meio a passeios, chuva, frio, um raiozinho de sol mais quente, resfriados e crises de hipertensão, invariavelmente terminávamos os dias a rir. E eu enredava-me nas minhas dores e refrescava-me com a presença deles, com a sua leveza. Até a minha gata Kitty, que não costuma simpatizar lá com muita gente, todos os dias subia à cama deles a dar os bons dias. Decidiu que a barriga do Marquinho era excelente lugar para tirar um cochilo à tarde. Quase tão boa quanto a minha.
A assinatura no Livro de Ouro

Verónica Vidal - mulher, escritora e curica

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Pedrógão Pequeno - um lugar chamado amor

P. José Afonso, eu e Marco - Eliane, D. Maria José e eu
Ouvimos dizer que aquilo que dá luta conseguir tem sempre um sabor mais doce. Que tudo que é fácil perde um bocado do seu encanto e mistério. Concordo com o dito porque a maior parte das coisas queridas e lembranças agradáveis que tenho foram resultado de lutas e tropeços, para que enfim viesse o delicioso sabor da vitória.

E partimos rumo a Pedrógão Pequeno, vila bucólica inserida no Concelho de Sertã e perdida como um oásis no meio das montanhas. E por uma combinação de inata falta de habilidade minha a encontrar os caminhos certos e insistência do GPS em nos fazer circular por quase todo o Concelho, exageros à parte, uma viagem que seria de 50 minutos tomou-nos 1 hora e meia, garantiu-nos muitos enjôos mas também brindou-nos com lindas vistas e caminhos que a nós pareciam inexplorados. 

A missão que tínhamos em Pedrógão Pequeno era simples: A tia do meu amigo, do alto dos seus noventa e poucos anos, havia-lhe pedido uns santinhos da igreja local, onde seu avô - ou pai, já não mais me recordo - havia se batizado. Como negar um pedido a uma senhora quase centenária? Missão dada é missão cumprida e, perto ou longe, lá iríamos nós. E lá chegamos.

E encontramos uma típica vila portuguesa, paramos no café e perguntamos onde ficava a igreja de São João Batista. A simpática jovem do café indicou-nos prontamente: "É a Matriz". Ficava a dois passos. E lá estava o carteiro, que nos indicou a Junta de Freguesia, onde obteríamos informações acerca do padre, a fim de abrir a igreja só para nós, tirarmos as fotos e dar-nos, se houvesse, os tais santinhos. Em dois minutos o padre José Afonso estava conosco, recém chegado de trabalhos que estava fazendo na própria comunidade. Autorizou-nos a entrar na igreja e pediu à doce Sra. Maria José, que por ali se encontrava e que desviou-se do seu caminho para nos ajudar. Já nãoexistem mais os santinhos, mas saímos de lá pesados de fotos, descobrimos a história do local e da igreja, descobrimos a pia batismal onde o avô havia se batizado - o mote da viagem. Fotos tiradas, histórias contadas, visitas feitas. Descobrimos que, acima de tudo, nada é mais importante do que a boa disposição das pessoas. O empenho sincero que todos ali tiveram em nos ajudar marcará nossos corações para sempre e assim temos a certeza de que, por mais que o homem invente o GPS mais moderno, o que nunca falhará mesmo é o amor.   

Verónica Vidal -  Pedrógão Pequeno será sempre lembrado como um lugar acolhedor onde cada uma das pessoas que encontamos pelo caminho, se predipôs a ajudar. Que todos sejamos assim, grandes, como os habitantes de Pedrógão Pequeno.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

A deliciosa desarrumação de uma casa

A maturidade nos presenteia com tantas boas coisas que acabamos por deixar passar em brancas nuvens as rugas e os quilinhos a mais que com ela vêm atrelados. Algumas pessoas envelhecem e apenas tornam-se velhas, não amadurecem. Triste isso. Essas somente verão o lado escuro do tempo que passa.

Quando eu era mais jovem, queria manter minha casa sempre "limpíssima e arrumadíssima" e, com três crianças mais um trabalho fora, a tarefa era quase hercúlea. Hoje, raramente minha casa estará arrumadíssima. Hoje meu tempo é dedicado principalmente às pessoas que amo, a fazer o que gosto. Sim, meus netos podem pular na minha cama e brincar com os ímãs do frigorífico. Sim, os ímas partem-se e nós os colamos ou fica aquele montinho partido num cantinho à espera de ser colado. Sim, hoje eu chego em casa e sento-me no sofá a ver TV com uma taça de amendoins ao colo e a minha gata salta para cima de mim, enche-me de pelos e a louça fica por lavar, porque a companhia do meu marido é mais interessante do que uma pia livre de louça. Sim, tenho livros espalhados pela casa e marco-os com qualquer coisa, seja uma carta, um papel, um clipe, porque nunca encontro o marcador de livros próprio. E não é o fim do mundo.

Minha casa conta a minha história, diz o que eu fiz hoje e possivelmente ontem. Ela emana vida, amor, dor, pressa, cultura, risos e tudo isso ao mesmo tempo. Meus sofás têm os arranhados da gata, no corredor invariavelmente terão os tênis do meu marido, meus livros lidos moram na estante, os que estão a ser deglutidos moram por aí, minha bíblia vai passeando pela casa conforme o dia.

É bem certo que a louça que hoje não é lavada estará lá amanhã. Mas não sei se o marido que hoje não é acarinhado amanhã estará lá. Os ímãs que se partem podem ser repostos. Os netos que se vão nunca o poderão ser. Se eu pudesse voltar no tempo brincaria mais de bonecas com minhas filhas, no tapete branco da sala de estar.