segunda-feira, 4 de março de 2024

Porque tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei o meu amor

Querido Pedro,

Quando o dia amanheceu hoje, nesta terra de marços frios e húmidos, o sol brilhava em meio ao nevoeiro. Eu acordei sentindo-me especial num dia muito especial. Já desde ontem sentia a ansiedade a bater no peito porque hoje completarias 1 aninho. E neste teu primeiro ano de vida tanto se passou, tanto aconteceu! Aprendeste a sentar, começaste a comer frutas e legumes, e carnes e peixes, e pães e bolos. Nasceram-te dentinhos e gatinhaste por toda a casa. Tens muitas horas de choro e mais horas ainda de risadinhas fofas que encantam a toda a gente. E durante todo este ano, vi-te crescer à distância, por relatos, por fotos, por vídeos e vídeo-chamadas. Estive contigo nos teus primeiros dias de vida e agradeço a Deus por aqueles dias preciosos. Doeu-me tantas vezes não estar aí contigo em vários momentos únicos. Mas sabe de uma coisa, Pedro? Aprendi que 'longe é um lugar que não existe' e que o amor transcende fronteiras e ultrapassa distâncias.

Eu amo-te só porque sim, amo-te porque sou tua avó Tua avó que mora longe e, se longe é um lugar que não existe, sou a tua avó que mora aí, junto de ti. Sou a tua avó que ora por ti todos os dias, pedindo a Deus que te proteja e te dê saúde e alegrias. Descobri em ti um amor gigante, diferente, profundo. Um amor de perpetuação, uma certeza do sempre. És o meu sempre, Pedrinho.

Para ti, desejo uma vida inteira de felicidade, de amor, de sabedoria e graça. Que do teu coração brote a bondade, que é o escudo para tudo o que há de ruim no mundo. Partilhe amor. Porque amor é dessas coisas que crescem muito quando são partilhadas. E eu amo-te até ao sempre.

Feliz aniversário, meu netinho lindo!

Vovó Verónica




sábado, 15 de abril de 2023

A cria da cria


 Ainda no outro dia eu te sentia dentro de mim. Sentia a tua vida misturada à minha, sem começo e sem fim. Sabia entretanto que o dia chegaria. O dia em que te separarias de mim. Queria ver-te crescer, queria ver-te vencer, mas queria manter-te dentro de mim. E neste misto de querer, tu quiseste nascer e te apartaste de mim.

E eu te levava nos braços, apoiava-te nos teu primeiros passos, enquanto tu corrias para longe. E te foste. Senti tua falta, senti. 

Uma vida se formava dentro de ti, que era a minha vida. Vida dentro de outra e dentro de outra, como um caleidoscópio de amor pulsante, batimentos cardíacos, movimentos constantes. Tua vida cresceu, espigou-se, saiu de dentro de ti. Minha vida dava vida, minha vida alimentava vida. Num misturar de mãos e dedos, de bocas e peitos, eu já não mais encontrava lugar ali, e, tão desnecessária estava, tão longe, que parti. Levei tempo para ocupar meu lugar de expectadora de ti. Ainda calco o chão, ainda dou passos vacilantes, como se só agora  eu aprendesse a andar.

Um amor diferente brotou dentro do meu peito. Um amor mais doce, mais livre, sem medos e sem exigências. Uma certeza de sucesso, de perfeição, como se aquele perfume eu já tivesse sentido, como se aquele livro eu já tivesse lido. O livro bom, o perfume suave. 

Sei que vais sofrer todas as dores da incerteza, vais verter todas as lágrimas amargas da maternidade dorida, de um amor impossível e sem medida, de um medo constante e terrível. Mas também sei que vais experimentar a felicidade plena, a continuidade da tua própria vida em cada sorriso desdentado, em cada passinho cambaleante, em cada desenho em giz de cera. E eu estarei aqui, expectante e mentirosa, a falar constantemente da minha alegria em te ver crescer com sucesso e longe de mim, quando tudo o que eu mais quero é te pegar no colo, segurar tuas mãos e ajudar-te a caminhar. Mães mentem quando soltam as rédeas do filho. Mães nunca as soltam. 

Verónica Vidal

À minha filha Camila, mãe do Pedro, que começa agora a experimentar os sorrisos e as lágrimas dessa mágica chamada maternidade.


segunda-feira, 7 de novembro de 2022

É um vazio que ocupa imenso espaço

Não nos despimos do luto, ainda que não nos vistamos de preto. 

Não nos despimos do luto, ainda que celebremos a vida. 

Nosso luto fica cravado na alma, acumula-se junto às outras perdas dolorosas. A dor da perda não é mensurável, não pode ser comparada, não dói mais em mim do que em ti. Nascemos para a vida eterna e é simplesmente natural que não aceitemos a morte. O amor sobrevive ao fim da carne, ele continua mesmo após o último suspiro do ser amado. E não o teremos mais conosco.

Somos massa maleável, moldados por tantas coisas na vida. Nossos pais, o ambiente em que crescemos, a sociedade em que vivemos, a escola que frequentamos, os livros que lemos, as músicas que ouvimos, as pessoas que cruzaram os nosso caminhos, cada um, cada pequeno evento ajudou a construir o que somos hoje.

A minha avó foi uma grande influenciadora na minha vida. Com ela aprendi que choramos o que temos que chorar, porque amanhã a vida nos trará algum motivo para comemorar. Aprendi mas pouco usei. Sou egoísta, queria-a para sempre. 

Dela eu ouvi a primeira história do casamento da D. Baratinha. E foi a sua versão da história que eu contei para as minhas filhas e para os meus netos. Ainda sinto o cheiro e o sabor das empadinhas de queijo que só ela sabia fazer. Mentira, minha mãe também sabia, mas era receita da vovó. Talvez eu me agarre a uma meninice que todos sabemos que nunca mais voltará, mas assim é e eu não quero me soltar. Quero dormir e acordar com as lembranças do convívio com a minha avó. Das tardes ensolaradas e de brisa fresca nas areias de Iguaba. Das noites de Natal e do especial do Roberto Carlos, do relógio a badalar as doze horas e de toda a gente a se abraçar. Das festas juninas com o mesmo disco a tocar sem parar e os primos a acender o balãozinho japonês.

E disseram-me, com aquela tranquilidade de quem não se importa, que a minha avó já havia vivido por 101 anos. Que era muito. E disseram-me que eu sou adulta e vivo longe, e que isso era bom, diminuiria o meu sofrimento. E meu egoísmo não me permite pensar assim. Minha avó não tinha idade nem distância, tinha uma presença etérea que não se desfazia. Eu não herdei a sua força. Eu não herdei a sua capacidade de superação. Eu quero me enrolar debaixo dos cobertores e chorar a sua partida. Eu tenho 55 anos e não tenho avó, não sei o que fazer.

A morte da minha avó dividiu-me em duas: Na mulher forte que quer honrá-la e brindar a tudo o que foi a sua maravilhosa vida, e na menina pequena, órfã, perdida e sem rumo. Sei que hei de passar por mais esta perda, que hei de sorrir e de chorar e que só as boas lembranças ficarão, porque este é o preço que a vida nos cobra.

Verónica Vidal




segunda-feira, 11 de abril de 2022

A Vóternidade aos 101

 

101 anos de vovó Alice

Na minha cabeça, a minha avó Alice já nasceu avó. Sempre foi assim e assim seria para sempre. Só depois de muitos anos, quando eu me tornei avó, percebi que não existe uma palavra que defina essa transição. Para as mães, temos a maternidade, para os pais, a paternidade, mas e para as avós?

A vóternidade, assim, com acento agudo, palavra impossível na nossa língua, é vivida de forma intensa, ainda que sutil, pela minha avó Alice. Ela foi se tornando mais avó à medida que mais netos lhe nasciam, de tal forma que a sua vóternidade é hoje majestosa, imperial. Rio-me às gargalhadas quando atribuem longevidade ímpar à Rainha da Inglaterra, com apenas 95 anos. Minha avó Alice, na simplicidade dos seus 101 anos não alardeia fama, mas é a pessoa que governa a família inteira com um sorriso nos lábios e ao som de um Michel Teló na TV. E, convenhamos, a minha família mágica é muitíssimo mais importante do que toda a Grã Bretanha. Somos mais bonitos, mais simpáticos, mais divertidos e os nossos protocolos reais são seguidos sempre à risca: Há sempre festa. Não importa como ou quando, celebraremos.

Hoje, nos dias em que a vida me corre ao avesso, lembro-me da minha avó, ainda outro dia, a ouvir Roberto Carlos, sorrindo, de frente para a TV e sentada na sua cadeira de rodas. Ela dançava com os braços, e assim dizia-me que é importante que sejamos felizes com o que temos. E todas as minhas preocupações que então pareciam enormes, diminuíram de tamanho até que se desvaneceram totalmente. Vovó sempre ensinou-me sem palavras. E eu sigo o exemplo da minha avó Alice. Porque Deus não permite que uma pessoa complete 101 anos se a sua sabedoria não for superior à de todos. Minha avó Alice sabe das coisas.

Fui construída com as memórias que me ficaram gravadas no coração, feito tatuagem, para nunca mais saírem. De todas as minhas memórias a casa da minha avó lá está, viva, pulsante, barulhenta e cheia de amor. A minha família ganhou um nome, “a casa da minha avó” e ela é mesmo assim, um oásis de amor em meio a um mundo tumultuado. Cada vez mais espalhados pelas terras deste mundo, as sementes da minha avó derramam lágrimas de saudades, gargalhadas de alegria, abraços e beijos, tudo ao mesmo tempo. Oramos fervorosamente a Deus e contamos anedotas menos pudicas quase que na mesma frase. E é a minha avó Alice quem tudo orquestra, como se de longe estivesse, mas está tão imiscuída dentro de cada um de nós que já fica difícil separar quem somos, porque somos todos “a casa da minha avó”: Cada um de nós tem um pedaço dos natais, das festas, dos desempregos, das crises, dos casamentos, dos nascimentos, do tio Tão, do tio Jara e do papai, da Andréia e da tia Tete, da tia Leca e da mamãe, do avô Moacir e da Tide. Somos muitos, mas somos um só.

Feliz aniversário, vó. Confesso que ainda tenho ciúmes de ti, sei que é uma coisa infantil, às vezes queria ser a única neta. Mas no fim das contas sei perfeitamente que todos nós somos tu, vó. Confesso também que era eu que roubava o amendoim do topo dos cajuzinhos, mas isso é outra história. Beijo.


Verónica Vidal

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Somos Tão Bons

 

Somos pessoas tão boas, não somos? 

Mentira. 

Somos seres corruptos. Gostamos de parecer mais importantes do que realmente somos. Porque a nossa mediocridade não nos satisfaz. Mas a nossa preguiça em aprimorarmo-nos, seja lá no que for, é maior. Então mentimos. Ou falseamos a verdade. Induzimos o outro a nos julgar mais poderosos, mais inteligentes, mais estudados. Contraímos empréstimos para pagarmos o carro que nossos rendimentos não nos permitem ter, usamos maquilhagem para parecermos mais jovens, cintas para parecermos mais magros.

E vamos à igreja aos domingos. Sim, porque somos praticamente santos. O pináculo da criação. Ou não vamos à igreja porque a religião é corrupta e alardeamos que somos contra a corrupção. E sonegamos impostos. 

Repassamos posts nas redes sociais, revoltados com a fome na África e com a exploração infantil na China. E usamos as roupas fabricadas pelas pequeninas mãos exploradas pela indústria da moda, que reduzem seus custos à custa do sangue e da fome alheios. E escolhemos a alienação. Não vimos, não sentimos. A crítica serve para o outro e a desculpa serve para nós. 

Dizemos que sim, amamos os animais. Comemo-los porque somos onívoros. É a indústria que os tortura. Mas mantemos o nosso cão acorrentado no quintal, preso dia e noite, no verão e no inverno, por toda a vida. A ele, damos os restos da nossa comida. E tiramos fotos do nosso amigo, e sorrimos e nos sentimos benfeitores, porque este cão foi acolhido por nós, tem um lar. 

Revoltamo-nos quando descobrimos que um amigo nos criticou pelas costas. E criticamos impiedosamente este mesmo amigo, o vizinho, o cliente, o patrão, o empregado. Porque a falha do outro enaltece-nos. Nós não somos maus como os outros. Somos pessoas tão boas.

Verónica Vidal


Dois homens subiram ao templo, para orar; um, fariseu, e o outro, publicano.
O fariseu, estando em pé, orava consigo desta maneira: Ó Deus, graças te dou porque não sou como os demais homens, roubadores, injustos e adúlteros; nem ainda como este publicano.
Jejuo duas vezes na semana, e dou os dízimos de tudo quanto possuo.
O publicano, porém, estando em pé, de longe, nem ainda queria levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: Ó Deus, tem misericórdia de mim, pecador!
Digo-vos que este desceu justificado para sua casa, e não aquele; porque qualquer que a si mesmo se exalta será humilhado, e qualquer que a si mesmo se humilha será exaltado. (Lucas 18:10-14)




segunda-feira, 17 de maio de 2021

Nasce uma Estrela ou... um Escritor


 Já há cerca de um ano tenho este texto aqui meio escrito mas, por uma questão de elegância, fiquei à espera que primeiro o autor da obra abrisse a apresentação do seu livro. E já lá está, conhecido do grande público, o novo livro do Pedro Guimarães, "Criadores de Estrelas".

Não guardo segredo nenhum que, vez por outra, sou acometida de paixões lancinantes por alguns escritores. Sou mulher eclética e sem preconceitos e, do mesmo jeito que me apaixono por Isabel Allende ou Margaret Atwood, morro de amores por Valter Hugo Mãe, Saramago e Murakami Às vezes tenho até um certo receio de ser acusada de stalker ou qualquer coisa assim. Minha sorte é que muitas vezes o objeto da minha paixão já está morto e bem morto há muitos anos e a única coisa que eu persigo são mesmo livros. Livros não nos processam por perseguição.

Conheci o Pedro Guimarães - é, agora sou assim, tu cá, tu lá com o senhor - na apresentação do seu primeiro livro, "O Diário de um Morto", que me proporcionou grandes momentos de gargalhadas descontroladas e aquela cara estampada de tonta que só um leitor sabe que faz quando está imerso numa obra. Sim, caro amigo aficionado pela literatura: Você também faz uma cara peculiar quando mergulha numa obra assim, descuidadamente, em público. Pois bem, o então autor Pedro acabou por lançar um outro livro, igualmente delicioso e facilmente devorável, o "Crianças, Bichos e outros Patifes".

Ocorre que, a dado momento, escrever caiu-lhe no gosto e o senhor lá decidiu-se por lançar outra obra. Desta feita, não mais na primeira pessoa, mas um livro de mistério, romance e assassinatos, não necessariamente nesta ordem. E lança o "Criadores de Estrelas". Como já havia sido fisgada, li-o, claro. E durante o desenrolar da história, começo a perceber, no avançar das páginas, o nascimento de um escritor. Lembrei-me da personagem da Lady Gaga no filme (mentira, lembrei mesmo foi do Bradley Cooper, mas isso é outra história). Aquele que antes era autor de boas histórias, que contava experiências vividas na pele - dele próprio ou de outrem -, inicia agora a construção de um mundo imaginário, ainda que real. Entretanto, conseguiu manter a doce assinatura que fez com que nos apaixonássemos pela sua escrita. Se nos dois primeiros livros ele declara o amor pelas suas raízes, pela sua mulher e pelo seu neto, neste o Pedro declara o seu amor pela cidade de Coimbra. Os personagens passeiam pelos recantos da cidade e arredores e, de brinde, somos nós também transportados. Sem uma gota de pretensão, mantendo a linguagem simples e a narrativa direta que acabou por se tornar a sua assinatura, Pedro Guimarães deixa, com este livro, de ser um contador de histórias para ser um escritor. Presenteia-nos com uma crônica policial, meio ao estilo Rubem Fonseca, meio a jeito de conversa, que nos agarra às páginas, nos alimenta. Livro bom é aquele que agrada e Criadores de Estrelas agrada, põe-nos um sorriso de satisfação na cara. 

"O que realmente me impressiona é um livro que, quando você acaba de lê-lo, você deseja que o autor que o escreveu fosse um amigo incrível seu e que você pudesse ligar pra ele quando sentisse vontade." - J.D. Salinger (O Apanhador no Campo de Centeio(BR) /Uma Agulha no Palheiro(PT))

Verónica Vidal

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

A vida a preto e branco


 Tenho saudades de mim mesma. Saudades de um eu que cá está mas que já não se mostra. Saudades de uma vida que a mim me sorria e eu para ela sorria de volta. Saudades de uma inocência que nunca mais voltará.

O passar do tempo cura feridas mas abre crateras. Aumenta distâncias, desfaz mitos, deixa cicatrizes e molda-nos o sorriso. Geralmente o rouba de nós. Vejo crianças muito felizes, a saltar poças d'água, a brincar nos baloiços. Vejo adolescentes em bando a rir de um tudo e de um nada, a criar uma linguagem única. Vejo jovens casais enamorados, a tocarem-se, a abraçarem-se, a sorrir. Vejo adultos preocupados com as contas da vida. Mudos. Vejo velhos tristes, à espera da morte. Estáticos. E pergunto-me o porquê. Quanto mais o tempo passa, menos sorrisos vemos nos rostos dos que vivem, menos vida vemos nos rostos dos que esperam diligentemente pela morte. A vida se descortina aos poucos e vai se mostrando, nua, seca. As cores, antes tão suaves e doces se vão escurecendo, acinzentando-se, perdendo o brilho. O céu, outrora azul, torna-se plúmbeo. E ainda tentamos, escavamos em busca da alegria da meninice, da inocência do antigamente, num eterno faz-de-conta-que-eu-não-sei, na vã tentativa de uma felicidade mentirosa. Boa. E falsa. 

De tanto escavar, cansamos. E vestimos as nossas vestes cinzentas. E esperamos a morte chegar.

Verónica Vidal